sexta-feira, 3 de maio de 2013

A Fila: conto de Adelice Souza






   Adelice Souza








 
 
 

A fila(Para Nélida Piñon)



Será cálida, gélida, sólida, fábula, lógica, plácida? Será que tua alma ressoa tão proparoxítona quanto teu nome? Eu fico te olhando nesta fila, Nélida, procurando te reter e buscando palavras para o momento que se aproxima, aquele em que o tamanho da fila passa a não ter importância porque se chegou na frente, onde todas as filas acabam. Lembro do teu nome e vejo que ele, como o meu, foi formado de pedaços dos nossos ancestrais. Foi Daniel, o teu avô anagrama, quem saiu da Galícia, muito pobre e ainda muito pequeno, para construir uma república dos sonhos no nosso país. Meu avô e eu também tivemos encontros com nomes. Ele colocou em meu pai, um nome emprestado do cego Aderaldo, que acabou compondo o meu, nesta herança de sertão e de uma desatenta sensibilidade inata. Ainda tenho muito a descobrir, Nélida, mas meu pai também saiu, muito pobre e também muito pequeno, para construir a família da qual nasci, aquela de onde se originou o meu sonho. Devem existir outras semelhanças contigo, os seres também estão unidos pelos seus fracassos, mas os teus eu não conheço, são tua seara particular, sobre eles não sei comentar.

Então fico aqui, nesta fila, buscando nossas conformidades, enquanto te vejo, tão senhora dos anos, sentada nesta cadeira à espera de que esta fila nunca se acabe. Eu quero que ela acabe, Nélida, pois estou no seu fim. Sei que para você, neste momento, os palácios são construídos de sorvete, e há um regozijo em receber estes teus apaixonados súditos, estes que compram tuas posses e tentam se apropriar de você no momento em que se aproximam do espaço que irradia a tua luminosidade. Eles pensam que o teu colar e brincos verdes de bijuteria são esmeraldas, e que esta cadeira é um trono. Somente eu compreendo que estes aparatos apenas servem para esconder o oculto da tua escrita, este lugar onde nenhum de nós tem acesso, aparelhagem cifrada nas tuas entrelinhas, os devaneios no teu travesseiro, na tua marca de sabonete, no detalhe da armação dos teus óculos. 

Intuo, pelo teu abraço fervoroso na chegada, que nossas correspondências trocadas por estes dias já nos deixou mais próximas: você apareceu, abraçou-me e se surpreendeu com minha juventude. Desconfio se minha juventude te apraz, sei que o passar dos dias te encheu de muita humanidade, que mesmo querendo invejar a juventude, tua criação te mostraria onde foi preciso pisar para deixar rastros. E que antes dos vestígios, ainda não somos nada. Mas um rosto jovem que já não se tem é saudoso, a vida nos impõe trocas. E sobre as minhas festas dos últimos dias, tenho muito que te ensinar.

Há poucos instantes, ouvia você falar das tuas crônicas E me apareceram mares inteiros de apaixonamentos, desconfianças e medos. Pois até eu, Nélida, que não sou afeita às crônicas, deixei-me seduzir pelas tuas. E tenho muito medo quando me deixo seduzir, pois quero reproduzir de alguma forma o objeto de sedução, seja na carne, na atitude ou na composição. E eu não quero escrever como você, mesmo quando sinto que um deus pega na tua mão e revisa teu verso. Eu quero aquele demônio, Nélida, que te preferiu animal, mineral e vegetal ao invés de simplesmente mulher. E cronicamente, você comentou das máscaras que põe ao sair de casa todos os dias. E disse que elas são o teu suporte para enfrentar as aventuras e os dissabores dos tempos. Mas, Nélida, como não sentir medo quando você diz das tuas máscaras? Você falou – sorrindo este teu sorriso franco – que todos os dias, ao sair de casa, escolhia dentre as diversas máscaras que possuía, aquela que utilizaria para sair às ruas. E como eu vou descobrir se, naquele instante que me sorria e relatava de si, deixando transparecer uma preciosa rusga escondida na manga da roupa, você estava ou não se utilizando de uma de suas máscaras? Não, Nélida, é difícil suportar que este a quem a gente reverencia, veste-se com uma máscara para falar conosco. Mas fácil seria morrer do que desacreditar naquele que podemos eleger como mito. E por isso, eu sei que morro todo dia quando bebo na tua fonte e ao mesmo tempo vomito esta mesma água.

Esqueço temporariamente das crônicas, pois uma mulher na fila me desperta e me pergunta se eu já tinha reparado em como a fila dava voltas. Parece uma ciranda onde os teus fãs são as crianças brincando de roda com uma alegria eufórica de chegar a sua vez de dizer o refrão. Um rapazola fura a fila, contraria as regras do jogo, tira do bolso um papel machucado e declama para você. Emocionada, antes pela coragem e veemência do rapaz do que pela qualidade artística do que estava escrito, ouço você dizendo que está encantada, que isto acontece somente aqui, nesta parte quente do país. E eu penso: este rapaz é perspicaz, também ele leu aquele conto onde a professora se apaixonou pelo aluno e no momento que declama, vive uma rápida ilusão de que isso agora também pode ser possível. Eu, que nunca fui um menino, mas um dia também me apaixonei por um professor, sorri da ingenuidade do corajoso rapaz. Esta invasão é permitida, é uma invasão de homenagem. Eu é que não posso te invadir jamais, pois eu não quero somente a atenção, quero mergulhar naquilo que tua vivência produziu na dor. Quero sua viagem, sua mãe morta, um amor difícil e possível. E enquanto espero na fila, aceito o jogo, vou rindo e somente rindo, vestindo minha máscara doce, de leitora apaixonada e aguardo a minha vez como criança que dorme tranqüila em véspera de Natal, pois sabe que o seu pai crê na tradição dos presentes colocados dentro de uma meia.

Dias destes, escrevi para você algumas correspondências, e acho que foi devido a isto que agora você me chama para a frente da fila, colocando o meu anseio junto ao teu lado esquerdo e dizendo: fique aqui, a tua dedicatória será a última. Não sei se esse grau de aproximação e especialidade é de todo bom, é intranqüilo ver você ofertar palavras cuidadosas para outrem enquanto o meu livro permanece em branco. Mais inquieto é pensar que estas palavras todas, que estão sendo escritas, podem diminuir a inspiração para as minhas que virão, quando a fila terminar e somente restar nós duas. Mas aguardo.

O rapazola já teve o seu momento e agora é a vez de uma velha senhora que lhe presenteia com uma cartinha. Estar diante de você é o grande acontecimento da vida dela. Suponho que passou semanas escrevendo esta carta que por ora te entrega. Ela te confidencia que, por uma existência inteira, quis escrever uma linha com o mínimo da tua poesia, mas não conseguiu. Viveu dores parecidas com as tuas e era você que processava as experiências dela. Para comprovar isto, sua verdade máxima, a senhora não se bastou e trouxe, assim, seu marido de cúmplice e vejo ambos mendigando o teu carinho. Você recebe esta dádiva de entrega, mas eu não sei se percebe o quanto interferiu e modificou a vida desta senhora: parece-me que a carta, estando um pouco desajeitada, coloca você em distanciamento com o seu conteúdo. Depois de tantos anos, imagino que a estética quase chega a cobrir as tuas afetividades. Assim, presencio tua emoção e tenho medo que ela seja uma máscara. Aqui, Nélida, eu tiro a minha e percebo mesquinhamente que o meu amor por você ainda é literário, e ele carece de ficar humano como o desta senhora, pois é o amor humano que é grandioso e imperfeito. E eu quis ir embora porque, hoje, era ela que merecia todo o teu vagar. A dor e o amor daquela senhora conseguem ser maiores até do que os teus livros, pois são estes sentimentos dela e de tantas outras criaturas, que são elaborados e decodificados no teu papel. E nenhuma arte compreenderá jamais o recôndito inalcançável e inabalável que as entrelinhas daquela carta denunciam.

Qual é a tua dor, Nélida? Como compartilhar um pouco dela? Será que nesta oferenda particular na segunda página do livro você me legará alguma fórmula secreta para saber crescer? Ou terei eu que ser muito sagaz e perceber que todas as pistas já estão sendo dadas, aqui, neste instante, e que basta que eu seja realmente sensível para um dia poder transformar isto em literatura? São tantas as dúvidas que povoam meu mundo, Nélida, que minha ciranda é capaz de deixar de cantar e a roda se quebrar se esta minha hora se prorrogar por muito tempo.

Chega a minha vez. Você me oferta as tuas confidências e afirma, muito generosamente, uma afeição por mim. Não suspeito como me manifesto agora, mas um moço desconhecido passa ao lado e comenta do meu vestido que traz no meio do seio, um coração. Diz pra mim: Seu coração arfa. Moço intruso este, que entende de minhas vestes, de minhas veias e ainda rouba este verbo tão usado por você neste dia: arfar. Realmente estou a arfar e nem me dou conta. Um outro moço passa com uma câmera e me pede que eu prenda você comigo para sempre numa fotografia. Recuso com a desculpa de que carrego timidezas. Realmente trago as timidezas comigo, entretanto o que agora me assalta é o medo de gostar de estar presa ali, acompanhada de você e não querer sair jamais. Recuso a fotografia porque ainda não me construí, esta ainda não sou eu, algo deste instante ainda me transformará.

Está na sua hora de ir embora, mas ainda falta muito... Não basta se despedir dizendo-me que sou bela, e que para mim tudo será mais difícil por isso. Quero saber de que forma a tua beleza foi mais difícil. Quero ainda mais, Nélida, para fabricar belezas, beleza para camuflar a minha feiúra que já está aqui, beleza para disfarçar a outra, quando ela chegar. Não basta que acolha o meu abraço apertado dizendo-me que ele aspira à bem-querença. Nada adianta. Você caminhará pro hotel e eu ficarei aqui, desejando entrar na sua vida, vê-la acordar, saborear o desjejum, imaginar que a simples proximidade com a sua pessoa pode me fazer mais viva, mais criadora. Por isso um dos teus livros de contos dorme na minha cabeceira.

Quero mais do que saber que você é esta bela senhora que traz a riqueza verde no pescoço através das suas quase esmeraldas, que planta uma floresta frondosa perto da sua cabeça, adornando o seu invólucro. Ai, Nélida, no final, saber da sua existência somente me dá um medo, um medo de existir cujo proveito único é perceber que ele me levará para a luta. E sei que vou guerrear, Nélida, porque a nossa batalha é a mesma, e me dá forças saber que vou alinhar ao seu lado. Mas eu tinha uma coisa pra dizer, e esqueci, não houve tempo, naquele teu conto onde o palácio é um sorvete, achei que o sorvete ficou amargo, nem todo amor impossível acaba, Nélida, e aquele, aquele podia ser tão lindo. Pode até ser o calor das coisas, o meu romantismo diante dos fatos, mas quando eu li, vivi a personagem daquela mulher e não tive vontade de deixar de amar nunca, aquele vendedor de sorvete.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
O conto está no livro Caramujos Zumbis, que ganhou o I Prêmio do Banco Capital, em 2003. Segunda Edição, pela Editora Caramurê, de 2012. Contato para compra: Livraria Saraiva ou Editora Caramurê (www.caramure.com.br) . Projeto de teatro em andamento: a peça Kali, a senhora da dança ( estreia dia 19 de julho no ICBA).

5 comentários:

  1. Adelice, amiga(?),
    Que texto grandioso! Quase tive vontade de contar-lhe o meu primeiro encontro com a Nélida, no antigo Ilufba, em Nazaré. Mas não o faço, deixo-a curiosa. Este é o meu conto, o que nunca escreverei.
    Repito apenas: o seu texto é grandioso. Nele submergi prazerosamente.
    Um beijo,
    José Carlos SantAnna

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  2. Obrigada, José Carlos SantAnna, amiga sim, fico feliz com o carinho. Sempre que nos encontramos, é muito especial e afetuoso. Escreve, escreve o conto... mas na próxima vez que nos encontrarmos, vai contar também para mim... Beijo, inté breve. Adelice

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  3. Fiquei preso, desde o primeiro momento, à energia do texto, que combina humildade com grandeza. Do ser humano, diga-se, que é isso que aqui se trata. E muito bem.

    Bj

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  4. Lindo conto. Lembrei do meu encontro com Nélida em Paris, na Feira do,Livro. Maravilha de escritora.

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  5. AC e Nahud, viva aos encontros! Literários, virtuais, presenciais! Obrigada, Rita!
    Adelice

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